A alma tem janela ?

Ela aproximou-se do espelho para passar o creme antissinais, aquele que prometia milagres às mulheres com mais de 40. Olhou-se no espelho, no entanto, não conseguia ver seu rosto. Via tudo, menos o seu rosto.

Onde foi que tinha perdido-o? Estava desfigurada e por acaso, por uma bondade divina, estava sendo impedida de vê-lo? O que teria acontecido? Não conseguia lembrar -se de nada.

Começou a procurar pistas pelo  seu corpo. Seus pés descalços sentiam o piso que mais parecia cubos de gelo. Um arrepio corria-lhe  desde a sola do pé até a nuca. Fazendo parecer que  seu couro cabeludo   desprendia-se do restante do corpo. Rapidamente, olhou novamente para o espelho a fim de constatar se tal sensação era real. Viu sua cabeleira  no mesmo lugar, mas nada da sua face. Cadê seus olhos? Sua boca? Seu nariz? Suas maçãs rosadas do rosto? Aquelas ruguinhas que lhe incomodavam tanto,  já estavam fazendo falta!

Começou a pensar em que momento perdera-se de si mesma? Não possuir rosto é não ter identidade. Começou a imaginar se era somente ela que não estava vendo sua face, ou realmente havia desaparecido. Naquele apartamento, isolada do mundo, não haveria de saber.

Pensou então em sair para a rua e ver se algum estranho lhe dizia alguma coisa. Pegou a chave e abriu a porta, mas deu alguns passos para trás. E se fosse maluquice da sua cabeça? Iriam rir dela. Melhor esperar! Talvez fosse só um delírio, ou estivesse sonhando…

Voltou-se novamente para o espelho. Desta vez, sem coragem para olhar-se nos olhos e não ver absolutamente nada! Olhou para seu corpo, fazia muito tempo que não se olhava de verdade. A correria do dia a dia, não lhe permitiam analisar-se. Lembrou-se que precisaria trabalhar na manhã seguinte e entrou em pânico: Como pegarei o uber? E na loja, meus colegas e clientes não me reconhecerão? O gerente me chamará e dirá que não precisa de uma vendedora sem rosto!

_ Meus Deus! Por que isso comigo?_sussurou num ato de desespero.

Como ninguém respondeu, pensou em passar a mão e ver se sentia a sua pele, seu nariz, seus olhos, seus lábios. Mas o receio de ter um buraco negro no lugar de sua face a fez desistir.

Mas se estava sem rosto, onde estavam seus olhos que lhe viam? Foi mais uma vez para frente do espelho evitando levantar o olhar. Pela primeira vez não estava se achando gorda. Nossa, isso era incrível! Será que o medo de não ter identidade era maior que o de ser gorda?  Analisou melhor, até deu uma rodadinha em frente ao espelho. Pela primeira vez, em décadas, se sentia bem com seu corpo! Ou seria porque evitava olhar para sua face?

Mas num gesto de coragem extrema resolveu encarar-se novamente! Afinal, não conseguiria negar o problema caso ele existisse e se fosse só paronoia, logo passaria. Nesse instante, se condenou por não ter tomado direitinho os remédios da ansiedade. Fazia meses que achava não precisar mais dos seus comprimidinhos! Fez até uma prece prometendo que se Deus lhe devolvesse seu rosto, nunca mais iria desobedecer o médico.

Encarou-se de frente e viu dentro do espelho uma imagem embaçada que parecia ser seu rosto sorrindo  e dizendo: “Vem, vem, vem buscar seu rosto!” Sentiu um arrepio na coluna! Ficou receosa. Mas era tudo ou nada! Quem estaria com sua identidade? Precisava descobrir. Aproximou-se mais e mais  daquela voz e lançou-se pelo flash de luz que se abria à sua frente, em busca da janela da sua alma.

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