Responsivo

Mais que olhar pela janela, queremos que as portas sejam abertas para nós!

Naquele dia uma fumaça preta cobriu a cidade e o cheiro de carne humana queimada inundou as ruas e as praças. Em meio aos de tecidos e máquinas, também encontravam-se cento e trinta restos humanos, impossível de serem identificados. Eram apenas mulheres que saíam todos os dias para trabalhar por dezesseis horas, recebendo um terço do que os homens ganhavam.  Hoje, estamos aqui recebendo flores, cartões, chocolates, correndo atrás de curtir, compartilhar e marcar as amigas nas promoções de limpeza de pele, hidratação de cabelo, alongamento de cílios, tudo para comemorar o nosso dia!

Depois de mais de um século, o dia da mulher tem outra conotação. É um dia talvez que recebemos os parabéns mais falsos que já nos deram. E aquela perguntinha carregada de deboche e machismo: “Sabe por que inventaram o dia da mulher?” Porque todo dia é dia do homem!” Nunca deveríamos rir de uma frase como essa! Deveríamos, sim, fazer a pergunta: “Poderia me explicar? Não entendi!”  Os mais educados e simpáticos nos dirão: “Dia da mulher é todo dia!” Será mesmo?

Muitos não sabem mesmo porque há o Dia Internacional da Mulher. Até podem pensar que foi um homem que inventou. Sim! Talvez acreditem que algum marido arrependido tenha mandado flores, nessa data, à sua esposa, como pedido de desculpas.  Não foi assim, não!  A data foi instituída para lembrar a centena de mães, filhas, esposas e avós carbonizadas numa fábrica têxtil em Nova York, em 1911. Em muitos lugares do mundo, o dia 08 de março é lembrado como um dia de luta e não de flores. 

 Atualmente, o Dia da Mulher foi transformado em mais uma data comercial, que cultua a individualidade e a beleza padronizada. Somos bombardeadas pela mídia com milhares de produtos feitos exclusivamente para as mulheres. Adquirimos direitos e liberdade, mas, ao mesmo tempo, somos prisioneiras de uma sociedade que gera em nós a necessidade de consumir.  Como resistir a tudo isso? Estamos felizes nessa condição?

Consumimos diariamente corpos esculturais, produtos e padrões que nos disseram serem perfeitos para nós!  Assim, desenvolvemos a necessidade de agradar, de competir, de tentar se igualar às celebridades, sem, ao menos, questionar: a quem preciso agradar? Com quem estou competindo? Existe um padrão de beleza?

Ser mulher numa sociedade machista e midiática custa-nos caro. Geralmente a saúde física e mental que se deteriora ao longo da vida. Ser mulher e trabalhadora custa uma jornada dupla de trabalho. Ser mulher e mãe custa a renúncia a si mesma. Ser mulher negra ou indígena custa, muitas vezes, a vida. Ser mulher lésbica custa a exclusão. E poderíamos listar uma infinidade de rótulos que foram acrescentando-nos e tiraram de nós a nossa essência.

Nessa data, mais que receber flores, queremos o direito de plantar nossos jardins.  Mais que chocolate, queremos adoçar a vida que anda um remédio amargo de ser tomado. Mais que nos darem o direito de votar, queremos estar na política de forma igualitária. Mais que o direito de estudar, queremos ser cientistas, escritoras, pilotas, astronautas, engenheiras, cientistas políticas, presidenta, narradoras e comentaristas esportivas, caminhoneiras e tantas outras profissões consideradas masculinas. Mais que ter um trabalho e independência, queremos salários iguais, direitos ampliados e respeitados, menos olhares curiosos e surpresos, menos assédio. Mais que liberdade, queremos não ter medo de sermos seguidas na rua, de sermos violentadas nos casebres e nos casarões. Mais que nos deixarem falar pelos cotovelos, queremos que nossa voz seja ouvida e respeitada. Mais que olhar pela janela, queremos que as portas sejam abertas para nós!

Desculpa cara leitora, caro leitor, adoraria que essa crônica fosse enaltecendo e elogiando as qualidades das mulheres. Muitos textos farão isso! Mas não posso romantizar nossa condição e devo honrar cada mulher que, antes de mim, gastou sua vida em defesa de outras mulheres.

 Se não fosse a luta de tantas mulheres, essa crônica não chegaria a suas mãos assinada por uma mulher. Provavelmente, receberia um pseudônimo masculino. E você, leitora, não teria a oportunidade de lê-la se tivéssemos nascido há um século. 

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