Teríamos, nós, salvação?

Naquele momento olhei para o céu límpido e vi brilhar nele os primeiros fogos. Particularmente odiava aquele barulho, mas gostava de observar a luz que iluminava o céu. Tinha começado a ouvir a contagem regressiva, mas lembro de ter escutado até o cinco, depois disso fiquei tão absorta que tudo ao meu redor parecia ter sumido. Estar sozinha em meio a uma multidão de desconhecidos fazia eu me conectar mais com as estrelas e comigo mesma.

Estar perdida em meus labirintos possibilitava a tentativa de me encontrar. Me senti um pouco deslocada quando escutei a explosão das garrafas de espumante, o tintim das taças e os risos juntamente com a típica frase “Feliz Ano Novo!” Olhei em torno e percebi que algumas pessoas olhavam para mim com ar de solidariedade e sorriam. Retribui com um acesso de cabeça. Imaginei o que pensavam ao verem uma mulher madura vendo a queima de fogos solitariamente! Na verdade, fazia alguns anos que eu não me importava mais com o que as pessoas pensavam sobre mim. Olhar para o céu e para os meus labirintos era mais desafiador do que tentar compreender as pessoas.

Movi meus olhos novamente para o céu onde os fogos ganhavam altura e intensidade. A fumaça já começava baixar e pairar, em forma de uma extensa cortina cinzenta, recobrindo os prédios mais altos. Estava tão concentrada naquele momento que não consegui fazer pedidos, ou promessas para o próximo ano. Há algum tempo tinha deixado de criar expectativas para o ano que se iniciava. No entanto, não me sentia alguém sem esperanças. Acreditava ainda na humanidade, na raridade que é o ser humano. Como alguém que criou os fogos de artifício e foi à lua não teria salvação? Preferia acreditar! Ter “fé na vida, fé no homem, fé no que virá” como diz a canção.

As cores dos fogos chegavam a cansar os olhos dos adultos que quanto mais o tempo passava, mais perdiam o interesse. Já as crianças menores sentiam-se incomodadas e queriam colo, mas as maiores continuavam vibrando a cada novo formato, a cada nova cor, a cada estrondo diferente. Fiquei imaginando o que passava por aquelas cabecinhas tão focadas no presente e invejei-as. Elas estavam ali tão concentradas no espetáculo, que nada lhes tirava a paz. Quis ser criança novamente!

Mas um bêbado atrevido logo tirou-me a paz oferecendo-me um gole de algo que trazia em uma garrafa e tentando fazer-me companhia. Apenas acenei a cabeça num gesto negativo, mas ele não se convenceu. Dei uns passos para frente numa tentativa de fuga, porém sem sucesso! Ele acompanhou-me. Fingi estar olhando fixamente para os fogos que já começavam a diminuir. Ele parou ao meu lado e também ergueu a cabeça olhando para o céu, não me comovi e sua presença me embrulhava o estômago. Não, não merecia aquilo, só queria ficar em paz!

Tentei me concentrar nas luzes, mas elas logo cessaram. Não sabia se me retirava ou ali permanecia naquela companhia tão inoportuna! Tracei mentalmente uma rota de fuga: embrenharia-me no meio da multidão e desapareceria do olhar sonolento que me perseguia.

O povaréu já começava a dispersar-se, dei meia volta, apressei o passo, sem olhar para trás. Não sei se aquele homem veio atrás de mim, ou não, mas a sua imagem me perseguia mentalmente. Fingia não compreender por que sentia tanto asco. Na verdade, intimamente sabia: a solidão que doía nele era a mesma que refletia em mim. Teríamos, nós, salvação?