Surpresa ante a vida

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A primeira e imediata sensação que assoma aos que transpõem o portal da imortalidade é a surpresa diante da vida.

Para os que souberam caminhar com retidão, o desenlace dos despojos materiais enseja, mediante agradável surpresa, a constatação da continuidade da vida, não obstante a ausência dos trajes orgânicos.

A surpresa transforma-se em alegria e o Espírito haure, desde logo, a felicidade, em consequência da jornada que realizou dentro das austeras linhas morais e do comportamento sadio.

Para aqueloutros que preferiram o engodo e as transações da ilicitude, a desencarnação se constitui em terrível surpresa, porquanto faz que se defrontem com a vida conforme a viveram no ergástulo das forças físicas. Surpreendem-se vivos, lutando contra as velhas amarras a que se vincularam, padecendo as mesmas injunções que a ruptura dos liames fisiológicos de forma alguma conseguiu interromper.

Logo após, a surpresa se converte em angústia, em remorso tardio quão inoportuno, que domina as fibras mais sensíveis da alma e impõe-se como padecimento demorado.

Os que preferiram desertar pela falsa catapulta do suicídio, se arrojam às regiões da vida plena e estuante, surpreendem-se ao verificarem o prosseguimento da existência indestrutível fazendo-os experimentar as dores antigas, adicionadas às consequências das novas, que se infligiram mediante o absurdo da fuga espetacular à responsabilidade e ao desrespeito às leis divinas. Acompanham, nesse estado de indescritível horror, a disjunção do corpo em desagregação molecular, fibra a fibra estertorando-se, sensação a sensação desintegrando-se, e experimentam, por período longo, a aflição inominável que decorre da deserção ao dever por covardia, por astúcia ou por negação da vida que dilapidaram.

Jazem, igualmente, incontáveis Espíritos, em aturdimento, que se não dão conta do transpasse de um para outro lado da vida, anestesiados pelos vapores das sensações grosseiras que fruíram e utilizaram demoradamente, como outros que desvairam, odientos, ante a realidade que não desejavam. Constituem as massas compactas de hebetados que continuam a padecer as injunções fisiológicas em estados lastimáveis, de difícil recuperação. Formam legiões de alucinados mentais que buscam nos prazeres e nas sensações, que já agora não podem mais gozar, a continuação da forma material, atirando-se sôfregos aos despojos orgânicos em decomposição.

Constituem grupos famélicos, tornam-se obsessores impenitentes que se vinculam mental e fisicamente a cômpares com os quais se afinam em longo processo de simbiose psíquica, no qual o hóspede invasor constrange ao desequilíbrio o leviano hospedeiro receptor.

Organizam colônias de desequilibrados, suportando enfermidades que já lhes não podem corroer o organismo físico por não possuí-lo, sem embargo, mediante processo inditoso de ideoplastia, recompõem através da vitalização da forma de que não se querem libertar, carregando o simulacro de um corpo que lhes constitui pesadelo e horror. Encastelam-se outros em hibernação demorada, como fugindo à realidade da continuação da existência que lhes parece pesar na economia da razão.

Inevitavelmente, para todos, a desencarnação constitui uma cirurgia por meio da qual se despem as roupas externas sem que se produzam no íntimo do ser transformações reais.

Cada morte é semelhante à vida que cada ser mantém. Indispensável, por esta razão, o exercício de adaptação mental à transferência da forma física para as paisagens do espírito, de que ninguém se poderá furtar hoje ou mais tarde, porquanto a condição essencial para desencarnar é estar revestido da transitoriedade orgânica.

Construir o ideal libertado no mundo íntimo, abrasando-se com a certeza da continuidade da Vida após a porta tumular, é realização que transforma a surpresa da constatação da imortalidade num hinário de bênçãos e louvores que cantam as glórias da libertação depois de regularizados os débitos do cadinho purificador da etapa física.

Livro: Intercâmbio Mediúnico. João Cléofas (Espírito), psicografia de Divaldo Pereira Franco. Livraria Espírita Alvorada Editora. Salvador. BA. 1986.

Manoel Ataídes Pinheiro de Souza. CEAC – Guaraniaçu – PR. manoelataides@gmail.com