Pela janela, passei a invejar

Valéria Caimi é mestre em letras, professora da rede estadual, poetisa e cronista

Ver o mundo pela janela nunca adquiriu um sabor tão especial.
Abrir a janela e deixar o olhar apreciar a paisagem ao redor tem sido minha alegria, nesses tempos de isolamento. Confesso que fiquei muito mais detalhista e atenciosa ao que se passa além das minhas janelas.
Mas isso pode me tornar aquela vizinha curiosa, implicante, principalmente, com as crianças e idosos que teimam em se aventurar pela rua.
Um fato corriqueiro que aprecio, da minha janela, são as saídas do seu Epaminondas.  Seu Epaminondas é meu vizinho idoso, que mora sozinho numa casinha verde, de um único cômodo.  Mesmo com muita dificuldade de locomoção, esse solitário, passa pela minha calçada, todo santo dia! Conheço-o há mais de 20 anos, mas nunca tinha reparado na sua teimosia. 
E fico, eu, a paranóica da água sanitária, me perguntando: “O que será que tem tanto para fazer na rua? Não tem nenhum parente que possa fazer suas compras? Que sem juízo!” Observo que as demais janelas também se abrem e cabeças balançam em desaprovação a atitude destemida e inconsequente do seu Epaminondas. Mas ele segue sua marcha, sem ao menos olhar para as nossas caras insatisfeitas e pálidas, de falta de sol!
Já tive a ideia de ir até sua casa tentar convencê-lo do perigo que corre, ou me oferecer para fazer suas compras, mas recuei diante da alegria que transpareceu em seus olhinhos miúdos, ao acenaram para mim em um dia desses de isolamento.
No início, parecia que seu Epaminondas ignorava qualquer vírus. Creio que na sua casa não tenha nem TV, assim, não acompanhou o devastador vírus na Itália. Enquanto nos trancávamos em casa, lavando trincos, maçanetas, pacote de arroz, frutas e legumes, solas de sapatos, chão e filhos (nossa, como lavamos os filhos! Pobres coitados!), ele desfilava, sem máscara, pelas ruas, para a indignação da vizinhança.
Semanas depois observei, pela minha janela, que seu Epaminondas, passou a usar máscara. Já tinha ouvido falar do vírus. Mas nem o temido  segurava-o em casa. Continuava passando dia sim, dia também, pela frente da minha janela.
Já são quase seis meses, apreciando o mundo pela minha janela! E vendo o trote do seu Epaminondas, que não temia chuva, sol e, agora, nem o vírus! Minha indignação inicial foi se transformando em ranço, depois pena. Agora, admito que o que sinto pela sua ousadia, inconseqüência, ou fé, chamem como quiser, é a mais pura e santa inveja! 

*Esse texto é ficcional e qualquer semelhança com o seu vizinho, ou com o narradora é mera coincidência. 
 

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