Especialistas da região avaliam impactos da guerra da Ucrânia no Brasil
Em meio às negociações internacionais, a economista Rafhaella Zimmer, o técnico agrícola Tiago Fávero e o sociólogo Osnélio Vailati apontam reflexos do conflito na economia, agricultura e sociedade brasileiras
Três anos depois do início da guerra na Ucrânia, o conflito segue sem perspectivas claras de encerramento e continua provocando reflexos em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. Os efeitos são percebidos na economia, no setor agrícola e também na vida social, revelando como um embate travado no Leste Europeu ressoa até em territórios distantes. Para compreender melhor esse cenário, o jornal ouviu a economista Rafhaella Rocha Zimmer, o técnico agrícola Tiago Fávero e o sociólogo Osnélio Vailati, que avaliaram os desdobramentos do conflito para o Brasil e apontaram caminhos possíveis diante das incertezas globais.
Impactos na economia
A economista Rafhaella Rocha Zimmer observa que, a economia ainda sente reflexos mesmo após anos de conflito, que os impactos ainda estão presentes na vida do brasileiro, embora em intensidade menor do que no início. “O Brasil ainda sente alguns efeitos do conflito, mas bem menos do que no início. No começo, o problema maior foi a logística, empresas de transporte evitavam rotas ligadas à Rússia por risco de ataque e alto custo de seguro. Isso encareceu fertilizantes, combustíveis e alimentos. Hoje, o mercado já se adaptou, e esses custos foram em grande parte absorvidos. O que sobra é um efeito residual nos preços, principalmente de combustíveis, energia e alimentos, mas sem a pressão intensa de três anos atrás”, afirma.
Questionada sobre a possibilidade de um eventual acordo de cessão territorial e de fim da guerra aliviar os preços, a economista destacou que haveria reflexos positivos, mas com nuances. “É provável que um acordo assim alivie parte dos preços, mas com algumas nuances. No curto prazo, o impacto imediato viria do fim da insegurança nas rotas comerciais: o custo de seguro de transporte e o risco de interrupções cairiam, reduzindo despesas logísticas de fertilizantes, grãos e petróleo. Isso poderia refletir rapidamente em combustíveis e alguns alimentos. No médio prazo, o efeito dependeria também de fatores estruturais, como capacidade de produção, estoques e contratos já firmados. Então, a tendência é de alívio nos preços, mas não uma queda brusca instantânea, o mercado precisaria de alguns meses para se ajustar completamente”, salienta.
Para Rafhaella, a instabilidade externa é um fator que mantém os juros em patamar elevado no Brasil, com reflexos diretos no bolso do consumidor. “A instabilidade externa mantém o Banco Central cauteloso, e os juros ficam altos para conter a inflação e proteger a economia. Para o consumidor, isso significa crédito mais caro, financiamentos, empréstimos e cartões e, consequentemente, menor poder de compra”.
Por fim, ela ressalta que a guerra expôs vulnerabilidades do Brasil, mas também abriu caminhos para alternativas. “Além de combustíveis, o conflito impactou fortemente a cadeia agrícola brasileira, elevando custos e pressionando os preços de alimentos. A dependência de insumos (fertilizantes) vindos principalmente da Rússia tornou o país vulnerável, mas medidas como investimentos em produção nacional e alternativas como bioinsumos ajudaram a reduzir os efeitos. Mesmo assim, ainda há um efeito residual nos custos, mostrando como choques externos podem ter repercussão duradoura na economia”, comenta.
Desafios de insumo
No campo, os efeitos foram diretos e imediatos. O técnico agrícola Tiago Fávero enfatiza o impacto sobre a produção nacional devido à dependência de fertilizantes. “Com certeza, a guerra na Ucrânia tem impactos significativos na produção agrícola global e consequentemente nacional e local, principalmente no que diz respeito aos fertilizantes. Rússia e a Ucrânia são importantes fornecedores de fertilizantes para o Brasil, com a guerra interrompeu o abastecimento e aumentou os custos dos insumos, afetando principalmente os preços para os produtores brasileiros, já que o Brasil importa cerca de 80% dos fertilizantes que utiliza e com a Rússia sendo um dos principais fornecedores respondendo por cerca de 23%”, ressalta.
Ele explica que produtores brasileiros vêm buscando alternativas para driblar a escassez, embora os desafios permaneçam. “Os produtores brasileiros, vêm buscado alternativas para insumos especialmente fertilizantes, o Brasil vem aumentando as compras em outros países como Canadá e Marrocos e também está trabalhando para desenvolver a produção nacional de fertilizantes com foco em tecnologias, mas com grandes desafios como o alto custo de energia e a dificuldade de acesso a fontes de nutrientes como principalmente o potássio”, conta.
Para Tiago, mesmo que haja uma trégua, os impactos não desapareceriam de imediato. “Se houver uma trégua na guerra, os efeitos no setor agrícola podem se estender por anos, impactando a produção, os preços e a segurança alimentar global, pois a interrupção do fornecimento de fertilizantes e a volatilidade dos preços dos alimentos podem persistir. No Brasil, tem gerado alta nos preços de alimentos e combustível, além de afetar o mercado de grãos”.
Reflexos sociais
Encerrando a análise, o sociólogo Osnélio Vailati traça um panorama mais amplo, destacando a turbulência internacional que vai além da guerra em si. “O mundo passa por um momento turbulento comparável aos mais quentes dias da Guerra Fria. Essa animosidade entre as nações tem várias causas, dentre elas a necessidade do capitalismo de se reinventar ante as crises que são da natureza do próprio sistema. O Brasil, desde 2022, vem fazendo sua lição de casa, procurando fornecedores alternativos de alguns produtos cuja importação foi afetada pela guerra Rússia x Ucrânia. O país também se recusou a romper relações econômicas com a Rússia, apesar do cabresto que os países que compõem a OTAN tentaram lhe impor”, comenta.
Para ele, a pressão inflacionária ainda persiste, sobretudo em energia. “A Rússia é um importante fornecedor de petróleo, gás e fertilizantes agrícolas. Juntamente com a Ucrânia são grandes fornecedores de trigo, graças ao clima e ao solo Tchernozión, o mais fértil do planeta. É justamente no setor de energia e alimentos (massas) que a pressão inflacionária não cedeu totalmente, apesar dos esforços governamentais e da capacidade do mercado de buscar o equilíbrio, a estabilidade”.
Questionado sobre um possível acordo de paz, o sociólogo foi categórico. “A guerra contra uma potência nuclear não pode ser vencida, a não ser que ela desista, o que não é o caso, pois a Rússia foi resiliente e sua economia cresce. A vitória russa é certa, mas deixa muito ressentimento, especialmente na Europa. Penso que não veremos grandes mudanças nos preços de energia (petróleo e gás). Aliás, não acredito que voltemos a ter petróleo e gás barato, isso ficou no passado”, explica.
Osnélio também critica o modelo de autonomia do Banco Central e relaciona o cenário internacional à política econômica nacional. “Não vejo no horizonte próximo (cinco anos) uma redução substancial da taxa de juros. Mesmo assim, considero o patamar atual da SELIC exagerado. Isso se deve à autonomia do Banco Central, concedida no governo anterior. Eu não acredito ser possível uma verdadeira autonomia do Banco Central. Ele pode ser uma ferramenta do Estado para a indução do crescimento econômico, gerando qualidade de vida e bem-estar para a população, ou ser uma ferramenta a serviço do mercado financeiro para transferir cada vez mais dinheiro do orçamento da União para os banqueiros”, relata.
Por fim, ele reforça a necessidade de o Brasil adotar uma postura pragmática na geopolítica internacional. “Diversificar parceiros e não ser dependente de nenhum país corresponde a não colocar todas as moedas num cesto só. O Brasil precisa investir fortemente em educação, ciência e tecnologia. Manter sua tradição diplomática pacífica, mas se preparar para a guerra”, finaliza.
A guerra da Ucrânia, mesmo distante geograficamente, escancarou vulnerabilidades brasileiras, especialmente na economia e na agricultura, além de reforçar os desafios sociais e geopolíticos. Três anos após o início do conflito, os efeitos ainda se fazem sentir, revelando que a interdependência global transforma guerras regionais em dilemas mundiais. Os especialistas ouvidos são unânimes em apontar os reflexos não desaparecerão tão cedo e o Brasil precisa, mais do que nunca, fortalecer sua autonomia produtiva e estratégica diante de um cenário internacional marcado por incertezas e disputas de poder.