Vício em apostas endividou mais de 1,3 milhão de brasileiros em um semestre

Explosão impulsionada por influenciadores e jogos viciantes atinge jovens e trabalhadores; especialistas alertam: transtorno já afeta até 15% dos apostadores frequentes

O vício em apostas digitais já deixou mais de 1,3 milhão de brasileiros inadimplentes apenas no primeiro semestre de 2024. O dado alarmante faz parte de um estudo da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que revela um cenário de risco crescente: entre junho de 2023 e junho de 2024, R$ 68,2 bilhões foram gastos em jogos online. Esse montante representa 0,62% do PIB nacional e impressionantes 22% da massa salarial do país.

Com o aumento de 257% na movimentação de valores em apostas desde o fim de 2022 e a alta de influenciadores divulgando jogos de azar, a CNC prevê que mais 191 mil famílias devem entrar na inadimplência até o fim do ano. “É uma bola de neve silenciosa. Muitas dessas pessoas são jovens e de baixa renda, para quem a promessa de um lucro rápido é extremamente sedutora. O problema é que, em pouco tempo, esse ‘entretenimento’ passa a comprometer bens essenciais”, explica o economista-chefe da CNC, Felipe Tavares.

Como o vício se instala no cérebro
Segundo o psiquiatra do Instituto do Cérebro da PUC-RS, Lucas Spanemberg, o vício em apostas funciona de maneira semelhante ao uso de drogas ou comportamentos compulsivos como comer ou comprar. Tudo começa com a ativação do sistema de recompensa do cérebro, responsável pela sensação de prazer. O problema é que as apostas provocam uma liberação anormal de dopamina — o neurotransmissor do prazer. “Se uma experiência prazerosa normal gera uma ‘intensidade 10’ de dopamina, as apostas disparam esse número para 100. É essa distorção que torna o comportamento viciante”, afirma o médico. A pessoa então passa a buscar aquele mesmo nível de excitação, negligenciando outras fontes de satisfação.

Nem todo apostador vira viciado — mas o risco é alto
Embora o transtorno do jogo afete, em média, de 0,4% a 0,6% da população mundial, entre os apostadores regulares essa taxa pode chegar a 15%. “Ou seja, de cada sete pessoas que jogam com frequência, uma pode desenvolver dependência”, explica o psiquiatra coordenador do Ambulatório do Jogo Patológico do Hospital das Clínicas de São Paulo, Hermano Tavares.
O risco é maior em jogos de acesso imediato e repetição rápida, como os populares “tigrinho” e “aviãozinho”, que oferecem retorno instantâneo. “Esses jogos são muito mais viciantes do que uma aposta de loteria, que tem um intervalo longo até o resultado”, exemplifica Tavares.
Fatores como predisposição genética, idade (especialmente menores de 18 anos), histórico de transtornos mentais e o fácil acesso aos aplicativos aumentam a vulnerabilidade ao transtorno do jogo.

Quando o comportamento vira transtorno?
De acordo com a Associação Americana de Psiquiatria, o diagnóstico de transtorno do jogo é feito quando a pessoa apresenta ao menos quatro dos seguintes sintomas:

  • Pensamentos frequentes sobre apostas;
  • Necessidade de apostar valores maiores;
  • Incapacidade de parar;
  • Irritabilidade ao tentar parar;
  • Uso do jogo para escapar de problemas;
  • Apostar para recuperar perdas (perseguir prejuízos);
  • Jogar mesmo em momentos de angústia;
  • Mentir sobre o quanto aposta;
  • Prejudicar relações pessoais ou profissionais;
  • Depender financeiramente de outros para cobrir dívidas.

“O apoio da família e amigos é fundamental, porque muitas vezes o apostador esconde o problema até chegar a um ponto de ruptura emocional e econômica”, alerta o psiquiatra Rodrigo Andrade.

Influência digital e consequências judiciais
Com o avanço da CPI das Bets, instaurada pelo Senado em novembro de 2024, o papel dos influenciadores digitais na promoção das apostas está em análise. Nomes como Virginia Fonseca e Rico Melquiades, que foram convocados a depor, levantaram dúvidas sobre a responsabilidade na divulgação dessas plataformas. “Divulgar apostas não é crime por si só, desde que as casas sejam legalizadas. Mas, se houver envolvimento em fraudes ou promoção de sites ilegais, pode haver responsabilização criminal”, explica o advogado criminalista Dinovan Dumas.

Quando procurar ajuda
Se você ou alguém próximo apresenta sinais de vício em apostas, é importante buscar orientação médica ou psicológica. O tratamento inclui terapia cognitivo-comportamental, grupos de apoio e, em alguns casos, o uso de medicamentos.

Onde buscar ajuda gratuita:

  • CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) da sua cidade
  • Ambulatórios de dependência química de universidades
  • CVV (Centro de Valorização da Vida) – 188
  • Grupos como Jogadores Anônimos

Casos reais que acendem o alerta
As histórias a seguir são reais e foram compartilhadas por pessoas que enfrentaram as consequências do vício em apostas. Por vergonha, medo ou preservação pessoal, elas preferiram não se identificar. Mesmo assim, aceitaram relatar suas experiências com o objetivo de alertar outras pessoas sobre os perigos desse caminho.

“Vendi o carro da família achando que ia recuperar tudo em uma rodada”.
“Eu achava que era só questão de tempo até dar certo. Vendi nosso carro e comprometi todo o orçamento da casa apostando que logo viria a grande vitória. No fim, perdi tudo e deixei minha família em dificuldades. Foi quando percebi que aquilo já não era mais só um passatempo”.

“Perdi minha bolsa de estudos e precisei trancar a faculdade”.
“Sou universitário e comecei a apostar por diversão. No início, parecia inofensivo. Mas logo estava gastando todo o meu auxílio financeiro em apostas esportivas. Quando percebi, não tinha mais como pagar as despesas básicas do curso. Acabei perdendo a bolsa e trancando a faculdade. Foi devastador.”

“Acumulei R$ 20 mil em dívidas sem minha esposa saber”.
“Trabalho na roça e, nas noites em que ficava sozinho, comecei a apostar online. No começo era só curiosidade, mas fui me afundando. Quando vi, já devia mais de R$ 20 mil. Escondi isso da minha esposa até não aguentar mais. Contar a verdade foi uma das coisas mais difíceis que já fiz”.

“Usei o cartão da minha mãe para apostar escondida”.
“Tenho 17 anos e comecei a apostar pelo celular. Pegava o cartão da minha mãe escondido achando que era só um joguinho. Quando ela descobriu, eu já tinha feito quase R$ 5 mil de dívida. Hoje entendo o tamanho do erro que cometi”.

“Acreditei que tinha achado uma técnica infalível e perdi minha aposentadoria.”
“Sou aposentado e comecei a jogar em sites de cassino online. No início, ganhei algumas vezes e me convenci de que tinha descoberto uma técnica infalível. Continuei apostando cada vez mais e, quando percebi, minha aposentadoria tinha ido embora. Agora sei que aquilo era uma ilusão”.

Aposta segura é informação e limites claros. Antes de entrar em um jogo, avalie: é diversão ou dependência disfarçada?