Sem tempo para abrir sorrisos

Sai apressadamente do trabalho, já eram doze horas e, como sempre, eu estava  atrasada para pegar as crianças na escola. E  quando estamos atrasados  parece que as coisas enrolam-se de vez.

Por alguns minutos, parei à porta de entrada e  fiquei  procurando  a chave do carro dentro da minha bolsa, a qual parecia sugar os objetos que eu colocava nela. É incrível a capacidade que eu tenho de perder chaves. Sempre juro que  as guardarei no mesmo lugar dentro da bolsa para evitar o estresse de ter que perder alguns minutos procurando-as, porém, todos os dias, sou traída pela minha indisplicência e  pressa.

 Fiquei agitada e ansiosa  com aquela máscara que tapava meu rosto e  parecia me sufocar mais que o normal. Finalmente encontrei as chaves, então levantei as mãos para o céu em agradecimento de relance e observei que um  dos mendigos que sempre está pelas redondezas  apreciava sorridente toda aquela cena hilária protagonizada por mim. Senti raiva.

Fixei meu olhar fuzilando mentalmente o desocupado mendigo,  que parecia sorrir mais do que o comum, deitado na rampa de acesso, a qual era destinada aos cadeirantes. Olhei com mais intensidade e com olhar de desapŕovação, no entanto, ele demonstrava simpatia, ou pouco caso, pois continuava a sorrir. Deveria estar bêbado como sempre. Meu primeiro pensamento foi de julgamento: aquela hora  do dia atrapalhando a entrada das pessoas!

Ele olhava-me  e continuava mostrando sua arcada dentária branquinha. O espírito materno apoderou-se de mim, quando questionei internamente se ele  escovava os dentes todos os dias! Desci meu olhar para o corpo descansando do pedinte e senti um ponta de inveja. Mostrava-se tão relaxado, relax como eu costuma dizer. Mas toda a cobiça de tal relaxamento desapareceu quando reparei em suas roupas maltrapilhas, considerei que não tomava banho havia meses. Senti nojo e pena, ao mesmo tempo!

O que será que pensava ao me olhar? Será que me julgava e também sentia pena de mim? O que lhe fazia sorrir? Me senti mais incomodada ainda… Por que estava dando tanta importância para um mendigo sorridente? Balancei a cabeça em desaprovação a minha atitude e me dei conta que tinha que seguir. Caminhei, a trote, em direção ao carro que estava estacionado no outro lado da rua, sentindo uma imensa vontade de olhar para trás a fim de ver se o riso daquele homem permanecia escancarado. Entretanto, não tive coragem!

Abri o carro e entrei rapidamente, ajeitei-me no assento e antes de dar a partida criei coragem e olhei-o. A figura continuava lá olhando e sorrindo para todos que entravam e saiam. A maioria dos trabalhadores nem lhe notavam, outros olhavam-o simplemente.  Será que era somente eu que havia me incomodado com sua alegria?

Não  compreendia como alguém conseguia sorrir naquele estado, ou será que não tinha consciência da sua situação? Certamente não tinha! Ter consciência de quem somos, ou projetamos ser, inibe sorrisos. Pensei em mim! Quanto tempo fazia que não sorria naturalmente? Desde que foi preciso usar máscaras? Acho que coloquei minha alegria para repousar durante a pandemia! Enquanto isso, em minha testa já começavam a aparecer os sinais dos meus dias de mau humor.

Arranquei o carro, quase que numa atitude de fuga daquele sorriso que me perseguia. Considerei minhas reflexões tão desnecessárias naquele momento!  Não tinha tempo para abrir as janelas da alma naquele momento. O dever me chamava, pois as crianças já deviam estar me esperando.